A literatura após a tela
Estamos vivendo – quem sabe até quando- dentro da Era Televisiva. Quando Colombo pisou a América em 1492, o mundo deixou de ser uma tartaruga sobre quatro elefantes e passou a ter a forma de esfera. Da mesma forma, quando Neil Armstrong pisou a Lua em 1969, a terra deixou de ser uma esfera e passou a ser um cubo, com forma de televisor. Milhões de pessoas viram pela TV os primeiros astronautas caminharem pela superfície lunar e nesse preciso instante começou toda esta síndrome televisiva que hoje está em seu momento de maior expansão. A humanidade ficou sentada nessa mesma posição durante mais de trinta anos, e aí continua, desiludida, com o controle remoto na mão e com a sensação de ter encontrado o limite do universo.
A Geração Televisiva
Centrando-me, agora, no literário, poderia apresentar algumas perguntas: Como escreve uma pessoa que tem mais horas vividas diante do televisor que diante de um livro? O que a TV faz com os escritores? Vou generalizar, com o risco de equivocar-me ao converter minhas seqüelas televisivas pessoais em aspectos compartilhados por toda uma geração.
O zapping borgeano
No seu conto talvez mais conhecido, Borges (seu personagem) encontra, no porão de uma casa da rua Garay, um Alef, uma pequena esfera brilhante que contém o universo. O infinito, a totalidade do espaço cósmico, pode ser vista nessa esfera, de forma simultânea. Ao transformar o Alef em linguagem, ao recorrer à enumeração caótica de imagens, Borges se converte, sem o saber, no precursor da descrição do que é fazer zapping. Diz: “Vi o imenso mar, vi a alba e a tarde, vi as multidões da América, vi uma teia de aranha prateada no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto partido (era Londres)…” (é interessante recordar que Borges estava ficando cego quando escreveu este conto que pode ser lido como una elegia ao sentido da visão). Sempre me pareceu que as enumerações deste conto têm algo do zapping que fazemos, já bem de madrugada, à altura dos canais de documentários (“vi um câncer no seio, (…) vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa…”) Se fazemos a experiência de descrever o que vimos após algumas horas de TV, teremos como resultado uma enumeração não muito borgeana no lírico mas sim no caótico. Hoje em dia todos temos ligado nos nossos lares um Alef de 24 polegadas, um Alef doméstico e catódico, que nos mostra o universo.
A literatura involuntária
Um médico amigo me explicou que, quando lemos, os movimentos oculares são voluntários, por outro lado, quando assistimos à TV, os movimentos oculares são involuntários. Aparentemente, os mamíferos olhamos involuntariamente para o movimento, para o ruído e para a cor. Sem dúvida, a TV pode ser resumida nessas três coisas.
A musa aspiradora
Essa proposta tem seu risco. É difícil hoje em dia não ser engolido pela musa aspiradora dos meios audiovisuais. Digamos à maneira de Martín Fierro: toda história que caminha vai parar no projetor. O cinema e a TV engolem tudo com a convicção implacável de que uma história tem mais chance de existência quando é imagem que quando é palavra. Isto se torna inaceitável para um escritor, mas para a maioria das pessoas é assim, porque é muito maior a quantidade de gente vai ao cinema do que a quantidade de gente que lê.
A infecção começou imediatamente depois da guerra napoleônica. E se estendeu com passos de gigante. Em centenas de anos em todas as grandes cidades durante oito meses por ano, e nas cidades pequenas durante quatro, e nos pequenos centros durante duas ou três semanas, milhares, dezenas de milhares, centenas de milhares de italianos foram à ópera. E viram tiranos assassinados, amantes suicidas, bufões magnânimos, freiras multíparas e todo tipo de estupidezes postas diante de seus olhos, em um redemoinho de botas de papelão, frangos assados de escaiola, prime donne com a cara esfumada e diabos que saíam do chão fazendo caretas horríveis. Tudo isto sintetizado, sem passagens psicológicas, sem um desenrolar, tudo nu, cru, brutal e irrefutável.
Um sonho sugerido
Pessoalmente, tenho o privilégio de ter sido engolido pela musa aspiradora do cinema, o enorme privilégio de ser um desses autores descontentes com a adaptação cinematográfica de seu romance. É impossível para mim falar com objetividade sobre esse assunto, porque em segundos passo do humilde agradecimento à soberba do autor que se sente traído. Perco o juízo, zombo do cinema dizendo que é uma arte menor que tem apenas 100 anos de vida ao lado dos 3000 anos que tem a literatura ; digo que a literatura é para o cinema o que o erotismo é para a pornografia; digo que o filme do meu romance é a versão para analfabetos, etc, etc. A verdade é que ao redor de 40 mil pessoas leram o meu romance, e o filme foi visto por 250 mil pessoas no cinema, somente na Argentina, sem contar o vídeo e os outros países nos quais se exibe atualmente. Impossível competir contra isso. Não cabe a nós, escritores, competir com os meios de massa. Nem o próprio Shakespeare podia competir na sua época com as lutas de ursos que se faziam a poucas quadras do teatro.
O cinema presta mas não presenteia
Com tudo o que me aconteceu, não consigo diferenciar onde começa o literário e onde começa o cinematográfico. Não consigo organizar todo este intercâmbio, esta fusão, entre a palavra e a imagem. Digamos que a idéia básica para “Uma noite com Sabrina Love” me ocorreu enquanto assistia na TV a uma linda garota sorteando viagens ao Caribe. Recordo que em um determinado momento pensei: Quanto melhor seria se sorteasse uma noite com ela. Isto é , a semente inicial do romance saiu da tela da TV.
Casebre satelital
Vi em diferentes países da América Latina casas muito precárias, casas frágeis de adobe ou de zinco, com uma antena satelital presa a um lado, como uma parasita extraterrestre. A gente se pergunta: como se verá a televisão ali dentro? Como é o zapping dessa gente? Como, nessa pobreza, a informação que a televisão envia será interpretada? Que sonhos e desejos se derramam nesse novo mundo da tela? O que ganha e o que perde essa gente? Isso é algo sobre o que me interessa escrever. Interessa-me perceber a invasão dos meios até no lugar mais desolado e perdido do mundo.
(Daniel) Foi se aproximando de uma luz. De longe notou que era un televisor. Junto a uma casinha improvisada na beira da estrada havia uma vendinha de melancias, mel, ovos e queijo de campo. Era atendida por uma mulher velha de feições guaranis com um chapéu de palha, que olhava de lado o televisor, sentada sob um toldo de aniagem puída . Daniel cumprimentou-a.
– Quer alguma coisa ? – perguntou a velha.
– Não, obrigado. Estou de passagem.
Ambos viraram-se em direção ao televisor. Os cascudos esvoaçavam ao redor da luz que piscava, grudavam-se na tela e caminhavam sobre a cara da condutora do programa de entretenimentos. (…) A cor estava forte demais. Daniel lhe disse:
– Não quer tirar um pouco da cor?
– O quê?
– A cor – disse Daniel e lhe acomodou o botão até normalizar as cores.
– Não – disse a velha -, ponha como estava que meu filho pode ficar zangado . Eu não conheço l os botões. Ele liga de manhã e apaga de noite quando vem me buscar.
Daniel voltou a subir as cores. Compreendeu que a mulher o preferia assim, quanto mais saturada de cores estivesse a imagem , mais lhe agradava.
– E não troca nunca de canal? – perguntou Daniel.
– Não.
– E não quer que lhe ensine?
– Não – disse a velha -, assim mesmo está bem.
Daniel se lembrou de quando olhava televisão com sua avó. Ele trocava de canal tão seguido, que ela misturava os fios narrativos dos diferentes filmes e tecia sua própria história que tinha a virtude de ser sempre feliz, porque quando, depois de estar um tempo frente à tela, aparecia uma cena de risos ou abraços ou declarações de amor, ela se levantava e dizia “Que lindo como terminou”, deixando Daniel perplexo, perguntando-se como teria sido a história que havia armado sua avó.
Despediu-se da velha e se meteu de novo nessa escuridão que parecia estar fora do mundo.
(Uma noite com Sabrina Love, página 46, Anagrama, Barcelona, 2001)
O homem invisível
Um jornalista me perguntou há pouco se, com a adaptação do meu romance para o cinema, eu havia concretizado um sonho. Disse-lhe que não, disse-lhe que se meu sonho fosse ver minhas histórias levadas ao cinema, eu me dedicaria a escrever roteiros. Não acreditou em mim. As pessoas custam a acreditar que a gente prefere as palavras, que a gente prefere a invisibilidade. Nunca me senti tão invisível como no dia da avant-première do filme baseado no meu romance. Meus personagens foram se corporificando, emanando de minhas palavras à medida que eu ia ficando transparente. Sabrina Love (encarnada pela atriz Cecília Roth) aparecia nos cartazes da rua , na capa da nova edição do meu livro, depois dava entrevistas na entrada do cinema e a mim ninguém me cumprimentava, depois aparecia gigante na tela dizendo coisas que eu não lhe tinha feito dizer, saindo-se da minha história, vivendo novas situações fora de meu romance, porque já não precisava de mim, vivia por sua conta, e pouco lhe faltava para dizer que tinha sonhado uma coisa ridícula, que tinha sonhado que era o personagem de um romance de um autor ignoto, pouco faltou para que dissesse isso e eu terminasse ficando transparente na poltrona até desaparecer.